Uma fala que traça um paralelo entre traumas de grupos étnicos, o acirramento de um conflito que se arrasta por mais de sete décadas e um presidente que chegou ao comando de uma potência do Sul Global em meio a uma polarização política. A soma de fatores fez com que uma fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reverberasse negativamente nos últimos dias e trouxesse uma crise diplomática para o Itamaraty.
Tudo aconteceu no sábado (17), quando o chefe de Estado esteve, como convidado, na 37ª Cúpula da União Africana, evento realizado na Etiópia e que reuniu mandatários e integrantes de governos de 54 países africanos. Na oportunidade, ao responder perguntas para uma plateia de jornalistas, o ex-metalúrgico falou sobre as potencialidades das nações localizadas abaixo da Linha do Equador no cenário econômico e na geopolítica mundial.
Entre um ou outro assunto, um ponto não passou desapercebido: a classificação de genocídio, aplicada por Lula à tragédia vivida pelo povo palestino na Faixa de Gaza, vítima da guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, que detém o controle da região.
Nas palavras do líder, o episódio traumático não está sendo percebido pelas potências mundiais, mas se assemelharia ao Holocausto, cometido pela Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, que matou 6 milhões de judeus e pessoas de outros grupos minoritários.
Em decorrência do acontecido, na última segunda-feira (19) o governo israelense convidou o embaixador do Brasil em Tel Aviv, Frederico Meyer, para uma visita ao Museu do Holocausto Yad Vashem e o submeteu a uma reprimenda pública. Lula foi declarado pelos israelenses como "persona non grata" - alguém que não é bem-vindo no país. Como resposta, o Planalto convocou o diplomata a voltar para casa.
A atitude ainda foi alvo de debate na mídia e no Congresso Nacional, onde, na terça-feira (20), parlamentares se posicionaram contra - e também de maneira favorável - ao que foi dito.
O presidente do Senado, o senador Rodrigo Pacheco (PSD), inclusive, rechaçou a comparação feita pelo presidente da República. "Ainda que a reação perpetrada pelo governo de Israel venha a ser considerada indiscriminada e desproporcional, não há como estabelecer um comparativo com a perseguição sofrida pelo povo judeu no nazismo", pontuou. Segundo ele, a fala do petista seria "equivocada" e fugiria da tradição moderada da diplomacia nacional.
Na Câmara dos Deputados, um pedido de Impeachment foi protocolado pela deputada federal Carla Zambelli (PL) na quarta-feira (21). Assinado por mais de cem membros do Parlamento, a solicitação de impedimento argumenta que o presidente cometeu crime de responsabilidade ao proferir a declaração.
A fim de ampliar o debate sobre o tema e entender os contornos do cenário, o Diário do Nordeste conversou com especialistas em política externa. Na interpretação dos entrevistados, a postura assumida pelo petista não é um fato novo e demarca posições, seja de liderança ou de oposição em relação a ofensiva de Israel. A repercussão internacional, na visão dos estudiosos consultados pela reportagem, é menor do que a vista internamente, graças ao clima polarizado.
MUDANÇA DE ROTA
Conforme o professor Magno Klein, do curso de Relações Internacionais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), os impactos do ocorrido no âmbito doméstico ou no campo exterior devem ser avaliados separadamente, pois representam comportamentos diferentes.
"A fala pode ser considerada como radical, como agressiva em relação a Israel e solidifica um afastamento entre os dois países, que não começa agora, vem iniciando desde a tentativa brasileira de questionar os possíveis excessos causados por Israel na sua reação ao ataque terrorista causado pelo Hamas", iniciou, citando o apoiamento brasileiro a denúncia de genocídio apresentada pela África do Sul em Haia pela ofensiva militar em Gaza.
Que diferenciou em seguida: "Em termos de liderança e respeito internacional, o presidente Lula está lidando num contexto internacional de grande polarização, em que uma postura tradicional do governo brasileiro, de ficar em cima do muro ou de ser um mediador, tem se tornado cada vez mais difícil e isso pode explicar essa postura mais agressiva na declaração brasileira em relação a Israel".
Ao que mencionou o docente, o movimento faz com que haja uma aproximação do Brasil com posturas mais moderadas com relação ao conflito, mas ainda mantendo uma inconstância quando comparado com a posição de países do Sul Global, incluindo membros da liderança do BRICS - bloco econômico do qual também faz parte - e que são mais críticos à conduta israelense.
Além da investida discursiva que compara o massacre palestino com o Holocausto, Klein lembra que, na esfera judicial, medidas estão sendo tomadas por outros países para que seja apurada as denunciadas práticas de genocídio.
Na interpretação dele, a fala é "surpreendente", porque dificulta uma mediação, comum a estratégia adotada historicamente pelo Ministério das Relações Exteriores, mas pode denotar uma compreensão governamental.